Quando tudo começou, em 2004, o projeto “DV na trilha” não passava de uma ação solidária de fim de ano. Dez anos depois, a iniciativa se consolidou como a porta de entrada de muitos deficientes visuais no ciclismo. O grupo, que reúne voluntários e cegos na mesma bicicleta, encontra-se a cada 15 dias no lugar que adotou como lar, o Jardim Botânico de Brasília. Em meio à mata fechada do cerrado, num local onde os sons dão a dimensão da natureza que os cerca, os deficientes visuais (DVs) capricham na pedalada e delegam aos condutores a função de olhos.
Com a prática focada no mountain bike, o grupo foi responsável por despertar o interesse do campeão para-pan-americano Adauto Belli. Se hoje ele conta com um currículo farto, muito se deve ao DV na trilha. Em 2007, o adestrador de cães foi convidado pela psicóloga Simone Casenza, idealizadora do projeto, a experimentar a atividade. Ele treinava o animal de estimação dela quando esbarrou na chance de pedalar. “Os interessados em participar passam por um teste simples para saber se gostam do esporte, se têm aptidão. O meu teste foi logo a volta ao Lago Paranoá”, ri o atleta de 42 anos, como se os 100km pudessem ser encarados por qualquer pessoa inexperiente.
No mesmo ano, Belli foi convocado para integrar a Seleção Brasileira. Desde então, não parou de competir em provas de estrada, off road e até em outras modalidades, como a corrida de rua. Em 2011, Adauto foi o primeiro ciclista a completar, em uma bicicleta tandem, a assombrosa Cape Epic — uma das maiores competições de mountain bike do mundo, na África do Sul. “É uma prova muito dura para esse tipo de bicicleta, com dois lugares. Mas conseguimos completar e foi incrível”, relembra o brasileiro. Segundo ele, a deficiência foi positiva ao lhe dar oportunidade de pedalar em dupla com grandes atletas, como Marconi Ribeiro (duas vezes vice-campeão mundial de mountain bike) e Abraão Azevedo (campeão mundial máster na modalidade).
Em casa
Apesar de ter trilhado caminhos longos e distantes, Adauto não deixa de comparecer ao DV na trilha. “É minha missa”, brinca. No lugar que batizou como “quintal”, encontra amigos e revive a chance de conhecer pessoas de todos os tipos. Para a idealizadora do projeto, esse é ponto-chave dos encontros. “No parque, a gente consegue verdadeiramente fazer a inclusão social dos DVs. Eles interagem, conhecem gente nova e se inserem em um universo que não alcançavam antes”, avalia Simone. “Muita gente só precisa desse empurrão para melhorar a qualidade de vida”, completa.
No grupo há um ano, Mônica Messias, de 44 anos, saiu da clausura em que se inseriu desde a perda da visão, causada por uma diabetes há quase duas décadas. “Eu só tinha contato com minha família e com amigos próximos. Nem outros DVs eu conhecia”, conta. Ao visitar o grupo no Jardim Botânico, apaixonou-se pelo projeto. “Tem uma energia boa, principalmente pelo contato com a natureza, e trabalhou muito minha dificuldade de confiar nas pessoas, porque, na bicicleta, a gente entrega a vida para o condutor”, afirma.
Trabalho em dupla
A bicicleta tandem, usada no DV na trilha, tem dois bancos: o condutor vai na frente, e o deficiente visual, atrás. Há modelos para estrada e para mountain bike, sendo que os mais competitivos pesam menos e são mais caros. Uma vez que os veículos custam em torno de R$ 6 mil, a manutenção do projeto depende de doações.
Emoção contagiante
O projeto DV na trilha conta com 20 bicicletas tandem conseguidas por meio de doações. Sem recursos para aumentar a frota, há uma lista de espera de deficientes visuais interessados em participar. A iniciativa começou com o grupo Mountain Bike Brasília, que sempre fazia uma ação social no fim do ano. Eles se juntaram com os ciclistas do Rebas do Cerrado, também de mountain bike, e ofereceram aos deficientes visuais a chance de andar de bicicleta.
“Havia cego que nunca tinha pedalado na vida. Eles saíram do passeio tão emocionados, que todo mundo captou a energia. Não poderíamos parar ali. Foi quando criamos o projeto”, explica a idealizadora, Simone Casenza.
Quinzenalmente, cerca de 40 pessoas se encontram no Jardim Botânico, reserva ambiental que abraçou a ideia. “As pessoas se apoderam do parque, o que é positivo, já que cuidamos melhor das coisas que gostamos. Além disso, é um trabalho social e esportivo significativo, de inclusão dessas pessoas na sociedade”, acredita Marcelo Ottoni, diretor adjunto do local e condutor voluntário do projeto.
O próximo encontro será em 12 de abril. “Todos são convidados para ajudar. A gente sempre acha uma função para os voluntários. Antes de se tornar condutor, é feito um rápido treinamento antes do passeio”, completa Marcelo Ottoni.
Programe-se
Data do próximo encontro: 12 de abril
Horário: 9h
Local: Jardim Botânico de Brasília
Contato: Simone Casenza — 8402-0773
Fonte/Imagem: Correio Braziliense